INFORME DA PRESIDÊNCIA DO PARLAMENTO DO MERCOSUL A RESPEITO DECRETO Nº 6.592, DE 2 DE OUTUBRO DE 2008 DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A OPERAÇÃO FRONTEIRA SUL 2

Montevidéu, 31 de outubro de 2008


Antes de tudo, é preciso assinalar que as especulações que hoje circulam no Paraguai sobre a natureza e a finalidade do Decreto nº 6.592/2008 são resultado, em grande parte, de uma reportagem mal-informada ou mal-intencionada de meios da imprensa brasileira. Em uma dessas reportagens, amplamente difundida pelos jornais paraguaios, assevera-se que o citado decreto visa atingir os vizinhos do Brasil e, mais especificamente, o Paraguai, em função das ameaças aos cidadãos brasileiros naquele país e às tentativas de renegociar o Tratado de Itaipu.

Na realidade, a origem última do Decreto nº 6.592/2008 reside na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988. Com efeito, o artigo 84, inciso XIX, estabelece que é competência privativa do Presidente da República declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional.  Assim, a Constituição Federal consagrou o conceito de que a guerra ou a mobilização nacional (que não coincide com a guerra) só são admissíveis no caso estrito de defesa contra agressões estrangeiras, com a devida autorização do Congresso Nacional.

O termo agressão estrangeira, embora genérico e não coincidente com o conceito de invasão de território, denota, evidentemente, ameaça grave que demanda a necessária defesa do Estado e da sociedade.

Saliente-se que a Constituição do Paraguai, promulgada em 1992, contém dispositivos e conceitos muito semelhantes. Muito embora a Carta Magna do Paraguai tenha consagrado, no seu artigo 144, a renúncia à guerra, ela admite, pelo texto do mesmo artigo, el principio de la legítima defensa. Esse princípio da legítima defesa pode ser operacionalizado, segundo o que reza o artigo 238, parágrafo 7, da Constituição do Paraguai, pelo Presidente da República, que tem como um dos seus deveres e atribuições, conforme a redação desse parágrafo, en caso de agresión externa, y previa autorización del Congreso, declarar el Estado de Defensa Nacional o concertar la paz…….

Observa-se, dessa maneira, uma notável coincidência de conceitos e princípios entre as constituições do Brasil e do Paraguai, no que tange à possibilidade do exercício da defesa do país. Em ambos os casos, o fato deflagrador é a agressão externa, conceito genérico que não se esgota simplesmente na invasão do território. Ademais, os dois textos prevêem a necessária autorização do Congresso Nacional. As Cartas Magnas dos dois países consagram, na realidade, o princípio da guerra defensiva, admitida no plano do Direito Internacional Público.

No caso específico do Brasil, a mobilização nacional prevista no texto constitucional foi normatizada pela Lei nº 11.631, de 27 de dezembro de 2007. Embora essa lei só tenha sido sancionada no final daquele ano, ela foi redigida e enviada ao Congresso Nacional para apreciação em meados de 2003, muito antes, portanto, de quaisquer divergências com o Paraguai ou com outros vizinhos. O seu texto define a mobilização nacional como o conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Logística Nacional, destinadas a capacitar o País a realizar ações estratégicas, no campo da Defesa Nacional, diante de agressão estrangeira. A mobilização nacional é, dessa forma, um meio pelo qual o país se capacita para a realização de ações estratégicas visando à Defesa Nacional.

Deve-se ter em mente que a Lei nº 11.631/2007 criou o Sistema Nacional de Mobilização (SINAMOB), composto por diversos ministérios e tendo como órgão central o Ministério da Defesa. Portanto, a mobilização nacional é, em seus aspectos logísticos e de planejamento, uma atividade permanente do Estado brasileiro, não tendo relação com cenários de conflitos específicos. A lei em questão também previu que o Poder Executivo regulamentaria os seus dispositivos.

Coerentemente com esse entendimento, o Decreto nº 6.592/2008 estabeleceu, no caput do seu artigo 2º, que a Mobilização Nacional é a medida decretada pelo Presidente da República, em caso de agressão estrangeira, visando à obtenção imediata de recursos e meios para a implementação das ações que a Logística Nacional não possa suprir, segundo os procedimentos habituais, bem como de outras necessidades.

No parágrafo 3º do mesmo artigo, se esclarece que a Mobilização Nacional se subdivide nas fases de preparo e execução, sendo que o preparo é sistêmico (SINAMOB) e permanente.

O parágrafo 1º do artigo 2º contém o texto que causou as interpretações equivocadas e a atual polêmica. Ele está redigido da seguinte forma:

§ 1o  São parâmetros para a qualificação da expressão agressão estrangeira, dentre outros, ameaças ou atos lesivos à soberania nacional, à integridade territorial, ao povo brasileiro ou às instituições nacionais, ainda que não signifiquem invasão ao território nacional. 

Ora, esse parágrafo apenas qualifica a expressão “agressão estrangeira”, que já estava contida na Constituição de 1988 e na Lei 11.631/2007, para fins de deflagração parcial ou total da Mobilização Nacional.  Observe-se que em nenhum momento a Carta Magna brasileira e a citada lei pretenderam esgotar o conteúdo do termo agressão estrangeira no conceito clássico de invasão militar do território nacional, que é, evidentemente, mais específico. Caso houvesse essa intenção, o constituinte teria esculpido, no texto constitucional, o termo invasão como fato deflagrador exclusivo da mobilização nacional ou da guerra defensiva.

Além disso, deve-se considerar também que, no contexto atual das ameaças difusas e dos conflitos assimétricos, nenhum estrategista, em sã consciência, planejaria atividades de Defesa Nacional a partir unicamente do parâmetro de uma invasão militar clássica do território nacional. Tratar-se-ia de um pensamento estratégico inteiramente defasado e míope. Hoje em dia, até mesmo ameaças ambientais são componentes importantes da estratégia da Defesa Nacional. Por isso, o Ministério do Meio Ambiente, entre vários outros, faz parte do SINAMOB.

Entretanto, algumas das reportagens veiculadas em meios da imprensa regional desconhecem inteiramente a gênese e o caráter eminentemente defensivo do sistema de mobilização nacional e chega a insinuar que o Brasil teria aderido à doutrina norte-americana da guerra preventiva e das intervenções extraterritoriais. 

Ora, a guerra ofensiva e a as intervenções são explicitamente vedadas pela Constituição brasileira, que determina, em seu artigo 4º, que a República Federativa do Brasil rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios da não-intervenção e da solução pacífica dos conflitos, entre outros. Diga-se de passagem, a Constituição do Paraguai contém artigo (art. 143) com texto muito semelhante.

Não bastassem esses argumentos jurídicos, é conveniente assinalar que, do ponto de vista histórico, o Brasil é, há muito tempo, um país que não tem qualquer conflito bélico com seus vizinhos. Todas as suas questões fronteiriças já foram resolvidas e eventuais divergências são resolvidas estritamente pela negociação e a diplomacia. Aliás, o Brasil tem atuado como poder moderador em conflitos na região, tal como aconteceu, na década de 90 do século passado, no embate entre Equador e Peru.

Essa vocação pacifista e moderadora do Brasil foi intensificada no governo Lula, que tem se empenhado como poucos na integração crescente do Mercosul e da América do Sul e em exaustivas negociações, quando surgem eventuais divergências. Tal disposição para o diálogo foi recentemente testada no episódio que envolveu o governo da Bolívia e a Petrobrás, cujas negociações chegaram a bom termo.

Assim sendo, algumas das reportagens veiculadas são  inteiramente equivocadas e parece ter sido planejada para criar atritos entre o governo Lula e o governo Lugo. 

Outro ponto equivocado que tem sido veiculado, principalmente na imprensa do Paraguai, diz respeito à suposta previsão, no Tratado de Itaipu, de uma licença para que Brasil possa intervir unilateralmente na represa, em caso de ameaça. Pois bem, não há nada no Tratado ou em seus três anexos que enseje essa interpretação. Na realidade, é dever tanto do Paraguai quanto do Brasil, que dependem da energia de Itaipu, defender esse patrimônio em caso de ameaça. 

Em relação à Operação Fronteira Sul 2, ela é, como o próprio nome indica, uma repetição da primeira operação, ocorrida em 2006 sem quaisquer percalços, e que já estava prevista no planejamento militar brasileiro desde o início de 2007. Note-se que, em 2007, foi realizada a operação Pantanal, também ao longo da fronteira do Paraguai, que teve pleno êxito. Evidentemente, a Operação Fronteira Sul 2 não se limita à fronteira com o Paraguai, mas também às fronteiras com o Uruguai e a Argentina, desde o Chuí (RS) até Guaíra (PR). 

Tais exercícios militares periódicos ocorrem há muito tempo em vários trechos das vastas fronteiras do Brasil e se constituem em importantes formas de treinamento das forças armadas brasileiras. A bem da verdade, há uma preocupação, no Brasil, com o atual quadro de fragilidade das fronteiras. O nosso país tem fronteiras muito extensas e porosas, o que enseja toda classe de ameaças e ilícitos. E, desde a década de 70, com a criação, entre outros, do programa Calha Norte, tenta-se prover uma melhor segurança nos extremos do território. 

Por conseguinte, dizer que a referida operação foi concebida para intimidar o Paraguai, como foi ventilado, é pura falta de informação. 

De fato, Paraguai e Brasil vêm cooperando para aprimorar a segurança fronteiriça e combater o contrabando e o narcotráfico. Há vários acordos e projetos em andamento que comprovam essa assertiva, como o projeto do Regime Tributário Único (RTU), que deverá ser aprovado em breve, e o Acordo na Área da Defesa, que prevê exercícios militares conjuntos.

Obviamente, essa cooperação pode ser aprimorada e intensificada, pois os governos Lugo e Lula têm grande interesse no combate à corrupção e ao contrabando. 

No nosso entendimento, o Parlamento do Mercosul, na condição de representante máximo da cidadania do bloco, pode e deve contribuir com esses objetivos.

Por isso, julgamos conveniente que, já na próxima reunião do Parlamento, seja apresentada e aprovada proposta de criação de um Grupo de Trabalho inteiramente dedicado a estudar e apresentar propostas concretas para a solução das questões fronteiriças que afetam o relacionamento bilateral Brasil/Paraguai. Desse modo, o Grupo de Trabalho se debruçaria a fundo sobre questões migratórias, propriedade fundiária, contrabando, narcotráfico, compartilhamento de recursos ambientais e quaisquer outros temas relevantes, tendo inteira liberdade para obter todas as informações possíveis. Tal grupo deveria apresentar seu relatório até a última reunião do Parlamento do Mercosul neste ano (18-19 de dezembro).

Acreditamos firmemente que, ao adotar uma atitude de cooperação e propositiva, o Parlamento do Mercosul contribuirá decisivamente para desanuviar o atual clima de desconfiança que macula uma relação bilateral que reúne todos os elementos políticos para frutificar em projetos mutuamente benéficos.



 Dr. Rosinha
Presidente do Parlamento do MERCOSUL